page-header

Onde estão as armaduras no Kung Fu?

Por Rodrigo Wolff Apolloni (1970). Jornalista profissional, professor de Kung-Fu e Tai-chi-Chuan em Curitiba, mestre em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2004) e doutor em Sociologia pela UFPR (2011).

Texto originalmente publicado no grupo “Memórias das Artes Marciais Chinesas no Brasil”.

Outro dia, durante um encontro virtual com alunos, fui brindado com perguntas interessantes. A primeira era “Mas, afinal, onde estão as armaduras no Kung-Fu?”; a segunda, “onde estão os escudos no Kung-Fu?”. Boas perguntas, que merecem reflexões.

Armaduras (盔甲, kuījiǎ) e escudos (盾, dùn), é claro, existem no contexto das artes marciais chinesas. Hoje em dia, porém, esses elementos não aparecem na mesma proporção e nem com a mesma intensidade do que as armas, por exemplo. Mas, estão lá.

Quando, por exemplo, os lutadores usam protetores (peitoral, genital, caneleiras, capacete), estes equipamentos constituem um tipo de armadura, na medida em que servem para minimizar o impacto dos golpes.

No caso dos escudos, eles aparecem nas rotinas de alguns estilos modernos. Mesmo assim – e os colegas me corrijam se eu estiver errado –, em uma proporção bem menor que a das armas. Em outras palavras: parece haver muito mais equipamentos de ataque do que de defesa nas academias. Mas, será que é isso mesmo? Se é assim, por quê?

Comecemos pelas armaduras, que serão objeto desta e da próxima postagem. E vamos começar pelo final. Por que as armaduras (exceção feita às desportivas recentes, que já citamos) desapareceram?

Por um motivo histórico: o Kung-Fu atual, que conhecemos e praticamos, começou a se consolidar a partir do século XVI. Ele nasce de elementos muitos mais antigos, que se configuraram no declínio da dinastia Ming. Pois foi nesse mesmo período que os europeus (começando pelos portugueses) chegaram à Ásia trazendo arcabuzes e mosquetes (em chinês, 鉤銃, gōu chòng), armas de fogo muito mais sofisticadas que as então usadas pelos próprios chineses (os criadores da pólvora – 火藥, huǒyào –, no século IX).

Quando essas armas ingressaram na China, elas impactaram as armaduras, que se tornaram obsoletas. Se pensarmos que uma armadura chinesa da dinastia Tang, por exemplo, pesava em média 9 kg – entre proteção peitoral, abdominal, cabeça-ombros, braços e mãos, genital e coxas-canelas –, concluímos que não valia a pena mantê-la, até mesmo porque ela era muito cara.

É por isso, inclusive, que, durante a Dinastia Ming, as armaduras eram quase que uma exclusividade dos oficiais graduados e dos nobres. A soldadesca se defendia como podia, usando proteções corporais mais leves ou, então, peças de couro e/ou tecido.

No caso das academias de Kung-Fu do século XXI, há que se considerar, ainda, um aspecto empírico. Não é em muitas que vemos combates reais usando armas tradicionais (não falo, aqui, de rotinas combinadas, mas de combate livre). Naquelas que estão recuperando essas práticas – como a da esgrima chinesa (劍術, jiànshù), por exemplo -, armaduras ou proteções mais específicas estão retornando.

Armadura no contexto dos soldados do “Exército de Terracota” de Qin Shihuang (séc. III a.C.), fonte: Google

armaduras Tang de placas (séc. VII). Fonte: Google.

Como eram as armaduras?

Ao longo de 3.500 anos, entre as dinastias Shang e Ming, certamente houve muitos tipos de armadura – cada dinastia, cada período, trazia suas próprias contribuições, fruto, inclusive, de trocas com outros povos (especialmente, os povos nômades das estepes a norte e oeste).

As armaduras chinesas, porém, parecem ter um elemento comum: a construção a partir de placas, escamas ou lâminas (armaduras lamelares) unidas por fios ou aplicadas sobre uma base mole (como couro mais fino), que se mostravam especialmente flexíveis e capazes de dispersar energia. Alguns desses padrões eram muito sofisticados.

Aliás, esse é um princípio básico de toda boa armadura: ela não deve apenas “segurar” o golpe, ela deve dissipar a sua força e, assim, reduzir o impacto direto. Isso também explica porque os chineses faziam uma dobradinha “metal-couro-tecido”.

O princípio é simples: por sua flexibilidade, o tecido oferecia mobilidade, o que é essencial. Quando sobreposto em camadas ou usado na forma de capas ou saias longas, também ajudava a dissipar a energia dos golpes. É algo, aliás, que também vemos no Ocidente: não é à toa que a literatura cavalheiresca, aqui, é chamada de “Capa & Espada”!

Daí porque, muitas vezes, vemos heróis chineses adornados com vistosas armaduras que mesclam metal e tecido, inclusive seda. Para além do charme e do apelo psicológico das cores e da opulência – não confundir, aqui, com as armaduras de caráter cerimonial, que tinham uma função simbólica e psicossocial mais poderosa -, havia uma finalidade real.

Voltemos às armaduras. Dentre as mais antigas estão peças funerárias construídas com pequenas placas de jade. Durante a Dinastia Shang (estamos falando em algo como 1.200 a.C.), os chineses já possuíam um excelente nível de domínio sobre a metalurgia do cobre e do bronze, que eram martelados e moldados para a produção das placas que, depois de perfuradas e amarradas, formavam as armaduras. O couro laqueado também eram uma matéria-prima dessa produção.

Essas proteções “em rede” desempenhavam um excelente papel em relação a cortes, mas poderiam oferecer problemas, por exemplo, em relação à perfuração por lanças e flechas, que penetravam entre as placas. A solução? Placas maiores em áreas estratégicas como o peito, por exemplo. E, é claro, a sobreposição de camadas – quanto mais “fofo”, mais protegido!

As armaduras também desempenharam um papel importante em relação ao uso das armas. De fato, lutas com e sem armadura tinham características bem diferentes, começando por maior necessidade de esquivas (com a arma e com o corpo) e uma menor necessidade de buscar “pontos críticos” no corpo do adversário.

Foquemos, porém, nas lutas com armaduras. Na medida em que, mesmo com todos os cuidados, as armaduras tinham pontos mais vulneráveis – como, por exemplo, as áreas articulares -, os golpes cortantes e perfurantes com armas do Kung-Fu podem ser mais dirigidos para estas regiões (sugestão: examine os golpes das suas rotinas de Kung-Fu e avalie). No caso de golpes contundentes – o famoso “porretaço” –, porém, essa lógica não vale, uma vez que a ideia passava por romper a resistência da armadura por meio do impacto direto.

Exemplo de armadura. Fonte: Google.

Padrão da tessitura da armadura em escamas. Fonte: google.

O declínio e o abandono das armaduras no contexto do Kung Fu

Um processo interessante, dentro da arte marcial chinesa, é identificar em que momento ela começa. Essa ideia, aliás, está dentro de outra maior, que reside em conceituar arte marcial chinesa. Mas, nem vamos entrar nesta história porque, como bem disse um pesquisador, a quantidade de tinta gasta para definir arte marcial chinesa é a mesma que a quantidade de sangue derramado em batalhas na China ao longo dos últimos 3.500 anos.

Se considerarmos a arte marcial chinesa em termos cronologicamente amplos, é claro que as armaduras estarão lá, como já vimos nos posts anteriores e em muitas outras fontes. Elas existem desde, pelo menos, a dinastia Shang, há coisa de trinta e três séculos.

Se, porém, acompanharmos pesquisadores mais recentes (e eu sigo com eles), vamos associar as AMC ao período de consolidação dos estilos modernos, um processo que se inicia no século XVI-XVII e segue até as primeiras décadas do século XX. Um marcador desse período são as obras do general Qi Jiguang (戚繼光, 1528-1588, em especial “Novo Livro sobre a Eficácia [dos Métodos]”) e do geógrafo Zheng Ruoceng (鄭若曾, 1503-1570, “Compilação de Cartas Marítimas”), que listam estilos de arte marcial chinesa então praticados, com observações e críticas.

Nessa época, as armaduras ainda existiam (e seguiram pelos séculos seguintes), mas perdiam importância real à medida que crescia a presença das armas de fogo mais modernas, introduzidas pelos europeus. As armaduras eram caras, pesadas e, muitas vezes, pouco responsivas aos projéteis disparados por arcabuzes e trabucos.

Há que se considerar, ainda, um outro ponto importante já observado pelos participantes do grupo: as AMC modernas não surgiram no seio dos exércitos regulares, mas entre grupos sectários, milícias locais, corporações profissionais (como a dos mineiros), artistas de rua, minorias étnicas, religiosos e bandidos – indivíduos que, no mais das vezes, não dispunham de armaduras e nem de recursos para obtê-las. Os militares, é claro, também vieram a contribuir com o desenvolvimento das AMC, mas como um elemento a mais no conjunto da obra.

É de se pensar, inclusive, se a natureza irregular desses grupos – irregular no sentido de flexível, mais próxima da guerrilha urbana ou camponesa do que da tropa regular – também não contribuiu para um direcionamento à velocidade/movimento em relação ao poder de fogo. Tropas mais leves, ágeis, capazes de avançar e recuar mais rápido e, por isso mesmo, armadas de modo compatível. Mais frágeis, porém, diante de um esquema de guerra industrial, algo que foi testemunhado por ocasião da Rebelião dos Boxers (1899-1900).

E o que esses rebeldes usavam como proteção? Observando imagens da própria Rebelião dos Boxers, vemos roupas de algodão e capacetes. Nisso, aliás, seguiam as tropas ocidentais, que também envergavam uniformes coloridos de tecido, quepes e, em alguns casos, capacetes com maior grau de proteção (no Ocidente, a inflexão para uniformes menos “visíveis” e capacetes mais efetivos, de aço, aconteceria na Primeira Guerra Mundial).

o ingresso das artes marciais no contexto das academias no século XX

o que acabou por promover uma “seleção de práticas”

As práticas de contato, como as lutas de mãos livres, acabaram por receber (em especial, com sua aproximação dos esportes de luta) proteções corporais compatíveis com a ideia de “armadura”, que tem como finalidade reduzir o impacto dos golpes desferidos por um adversário.

Na medida em que os combates com armas tradicionais não acompanharam essa disposição (diante dos riscos envolvidos, eles acabaram “cristalizados” nas rotinas combinadas), proteções corporais compatíveis com o enfrentamento de lanças, espadas, facões e outras armas acabaram relegadas ao esquecimento.

Um processo que está mudando em tempos recentes por uma série de fatores, como novos materiais, pesquisadores empiristas e praticantes que querem ir “mais fundo na história”. E que tem implicado uma busca por armas e armaduras efetivas produzidas em materiais como polipropileno, espuma e couro.

Essa chegada, com a consequente “retomada das armaduras”, é bem-vinda, em especial para refinar o olhar dos praticantes sobre as AMC. E fortalecer a compreensão de certos aspectos envolvidos com o uso das armas (mecânicos, dinâmicos, biomecânicos, biodinâmicos, estratégicos etc.) e até com a adoção, ou não, de armaduras em combate. Como já observamos, a presença ou ausência de proteção modifica totalmente a forma de lutar.

Representações artísticas de momentos e uniformes da Rebelião dos Boxers. Fonte: google

Jing Wu Arte Marcial
Privacidade

Esse site usa cookies, assim conseguimos prover a melhor experiência possível aos nossos usuários. Informações dos cookies são armazenadas no seu navegador e performam funções como reconhecer quando você retorna ao nosso site, nos ajudando a entender quais sessões do nosso site você acha mais interessante e útil.